As recentes crises políticas e a necessidade de discutir matérias econômicas para retirar o país da recessão atrasam um debate mais aprofundado no Congresso Nacional sobre a regulação de novos serviços online.
Diante da dificuldade das instituições em acompanhar o avanço da tecnologia e da falta de uma legislação adequada, conflitos tendem a desaguar no Poder Judiciário — que, com decisões antagônicas, acaba gerando mais insegurança jurídica.
As plataformas de aluguel por curta temporada são um exemplo de serviço inovador que enfrenta esta situação. Depois de ter uma alta adesão na chegada ao país, o serviço passou a enfrentar resistência em alguns condomínios mais tradicionais.
As reclamações de moradores pela perda de privacidade e de uma possível redução na segurança devido à alta rotatividade de inquilinos cresceram e levaram alguns condomínios a proibirem esse tipo de locação.
A discussão jurídica divide magistrados e especialistas da área. De um lado, uma corrente de juízes tem referendado decisões de condomínios de proibir alugueis por temporada por entender que, se esse veto foi decidido pela convenção condominial, órgão máximo do local, a regra tem de ser seguida.
Para isso, geralmente suscitam o artigo 1335 do Código Civil, que prevê como “direitos do condômino usar, fruir e livremente dispor das suas unidades”.
De outro, condôminos sustentam a primazia do direito constitucional à propriedade, do princípio de que cabe ao proprietário a escolha de como usar seu bem. Nesse sentido, magistrados costumam citar outro dispositivo do Código Civil, o artigo 1228, que dá ao dono a liberdade “de usar, gozar e dispor da coisa” como bem entender.
É o que argumenta o advogado Luis Rodrigo Almeida, sócio de Viseu Advogados, que costuma defender condôminos que alugam suas residências por meio de aplicativos. “Mesmo que a proibição seja feita na convenção, por meio de quórum qualificado de dois terços dos condôminos, se a locação por temporada não ofertar serviços que possam desvirtuar o uso residencial do imóvel, há bons argumentos para o que direito real à propriedade prevaleça”, diz.
Vácuo legislativo
Sem uma lei para tratar especificamente sobre o aluguel de curtas temporadas por meio de aplicativos, o Judiciário tem sido acionado frequentemente para resolver conflitos entre pessoas que querem locar seus apartamentos ou quartos pela internet e condomínios refratários à ideia.
“Temos decisões para os dois lados e isso é muito maléfico para todos”, afirma o advogado Alexandre Matias, sócio do escritório Advocacia Maciel e secretário-geral da Comissão de Direito Imobiliário e Condominial da seccional do DF da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF).
Na visão de empresas do setor, o tema já se encontraria disciplinado no artigo 48 da Lei do Inquilinato. Mas, para Matias, o ideal seria que houvesse um debate sobre o tema da mesma forma que ocorreu com os aplicativos de transporte individual, que foram regulamentados pelo Congresso e também discutidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
“Tem que ser regulamentado para evitar o que acontece hoje. Não se sabe como cada magistrado vai decidir. Precisamos de uma legislação que coloque parâmetros”, diz. “Não se pode atribuir ao Judiciário este tipo de decisão, porque, embora o juiz seja obrigado a decidir algo no processo, não há uma base robusta para nenhum dos dois lados”.
No dia 4 de dezembro do ano passado, no processo de número 1117942-37.2017.8.26.0100, a juíza Cristiane Amor Espin, da 23ª Vara Cível do Foro Central Cível de São Paulo, por exemplo, manteve multas a um condômino que locou seu apartamento por meio do Airbnb. A proibição havia sido votada apenas em assembleia geral ordinária.
Na assembleia do condomínio do Conjunto Arquitetônico Camilo, localizado na rua Oscar Freire, em São Paulo, os presentes decidiram pela proibição da “utilização das unidades para fins de negócios de economia compartilhada como, por exemplo, a disponibilização em sites como AIRBNB, sujeitando-se o condômino que a realizar ou permitir às multas condominiais previstas, que, se repetidas no tempo, poderão ensejar em procedimentos para expulsão do condômino antissocial”.
Além disso, a juíza entendeu que é notório que a locação por meio de aplicativos trata de “hospedagem para acomodação de viajantes, o que descaracteriza a finalidade residencial”. Assim, o locador teria ignorado a vedação expressa aprovada na assembleia e, mais do que isso, desrespeitado a convenção do condomínio, que dispõe sobre a finalidade exclusivamente residencial dos imóveis.
Na segunda instância, em decisão transitada em julgado em junho último, o direito à propriedade prevaleceu. A 25ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) derrubou a multa e julgou procedente a obrigação do condomínio de não impedir a locação por temporada.
Segundo o relator Claudio Hamilton, “a utilização do imóvel para locação por curtíssimo espaço de tempo não implica descumprimento à destinação residencial imposta na convenção de condomínio”.
O desembargador afirma que como a restrição imposta pelo condomínio envolve a destinação dos apartamentos, este tipo de norma deveria estar prevista em convenção condominial, nos termos do artigo 1.332, III, do Código Civil.
O julgador afirma também que “não se ignora que o tema é conflituoso e tem comportado divisão doutrinária e jurisprudencial” e que “ainda que venha a ser expressamente prevista na convenção, tal restrição comportará nova discussão, para análise do cabimento, daí considerando também a vontade dos demais condôminos, o que não cabe ao caso fazer neste momento”.
Por outro lado, a 19ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no processo de número 0167356-70.2014.8.21.0001, julgou procedente o pedido do Condomínio do Edifício Coorigha, em Porto Alegre, para que dois condôminos fossem impedidos de locar quartos em seus imóveis por curta temporada.
Segundo a ementa do acórdão, “a ausência de vinculação entre os inquilinos, a reforma do apartamento no sentido criar novos quartos e acomodar mais pessoas, a alta rotatividade de pessoas e o fornecimento de serviços é suficiente para caracterizar contrato de hospedagem”.
“No caso concreto, caracterizado o contrato de hospedagem, atividade comercial proibida pela convenção condominial, impõe-se a manutenção da sentença de procedência do pedido cominatório formulado pelo condomínio, ficando vedado aos réus exercerem o referido comércio”.
No dia 10 de maio, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luís Felipe Salomão concordou com a defesa dos condôminos e viu divergência entre esta decisão e outra tomada pela 36ª Câmara de Direito Privado do TJSP.
Em processo similar, de número 1065850-40.2017.8.26.0114, sob relatoria do desembargador Milton Carvalho, a Câmara paulista entendeu que as plataformas de aluguel por temporada “não descaracterizam a destinação residencial do condomínio”.
Assim, Salomão deu provimento a um agravo em recurso especial para que o caso do Rio Grande do Sul seja julgado pelo STJ.
O advogado Luís Felipe Cardoso, da CPMA Advocacia, que atua na área do Direito Imobiliário e de regulação, acredita que o direito à propriedade deve nortear o debate sobre o tema e que eventuais questões relativas à segurança não podem se sobrepor a uma garantia constitucional.
“O próprio Código Civil é claro ao prever que o proprietário é responsável por algum dano que venha a ser causado. Então, existe a responsabilidade tanto das empresas quanto das pessoas, e a proteção da vizinhança não pode ser argumento para frear essa evolução que encontra amparo no Código Civil”, opina.
A regulação do setor também envolveria um debate social, acredita o especialista. Um exemplo é o que aconteceu em Paris, capital da França, uma das cidades que mais atrai turistas em todo o mundo.
Segundo ele, há uma preocupação em relação à elevação dos preços dos alugueis para quem é morador da cidade devido à redução da oferta para este tipo de locação diante da facilidade e alta rotatividade oferecida nos alugueis por temporada pela internet.
Congresso inerte
A tendência, pelo menos a curto prazo, é que a insegurança jurídica permaneça — isto porque as negociações para aprovação de um projeto sobre o tema no Legislativo não dão sinal de evolução.
Em 2017, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), chegou a criar uma Comissão Especial do Marco Regulatório da Economia Colaborativa, que tinha como função elaborar estudo para adequar as leis às novas tecnologias.
O então deputado federal Thiago Peixoto (PSD-GO) foi designado relator e, depois, apresentou um projeto para disciplinar as plataformas de aluguel por curta temporada. A intenção era regulamentar o setor e criar um imposto de 1% sobre o faturamento total das empresas responsáveis por intermediar o aluguel, que seria destinado ao Fundo de Ciência e Tecnologia ou do Turismo.
A matéria, porém, não avançou e sequer foi aprovado um relatório pela comissão. Na avaliação de Peixoto, a discussão não evoluiu por causa da pressão de associações hoteleiras e imobiliárias, que tentam impedir o avanço das plataformas para não perder espaço no mercado.
“Eu entendo, olhando de fora, que instituições imobiliárias e hoteleiras, que de certa forma não querem concorrência, tentam impedir uma regulação ou querem fazer uma regulação que, na verdade, será uma proibição. Quando você chama eles para o diálogo, como fizemos na Câmara, só serve se for para proibir”, critica.
Peixoto acredita que vetar os alugueis por curta temporada seria um retrocesso. “Acho que quase todas as regulações do setor com que tive contato tinham viés proibitivo. E esse viés, no meu ponto de vista, atrapalha o cidadão e a sociedade”, defende. “Além disso, devemos levar em conta o incremento de turismo que isso traz e que mais pessoas passaram a viajar por causa dos preços mais acessíveis neste tipo de locação”.
A proposta do ex-deputado foi arquivada ao final da legislatura passada e não foi mais retomada. Hoje, o que há de mais concreto no Congresso sobre o tema está no Senado. Trata-se de um projeto de lei apresentado pelo senador Ângelo Coronel (PSD-BA) que altera a Lei das Locações (Lei 8.245/2018) para estabelecer que o aluguel por temporada só pode ocorrer mediante autorização de ao menos dois terços dos condôminos.
O parlamentar alega que há um “vazio legislativo” e defende que os condomínios tenham um poder quase automático para vetar o serviço. “Não se pode negar o impacto positivo do avanço tecnológico, mas também não é razoável ignorar variáveis que acabam desvirtuando formas de usufruir da propriedade privada, principalmente quando interferem nos direitos de outros proprietários. O atual ‘vazio legislativo’ contribui para o aumento de conflitos nessa área”, argumenta.
A matéria deve suscitar polêmica na Casa. Relator da Lei Geral do Turismo, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) descarta a possibilidade de usar a lei para proibir as novas plataformas.
“Caso haja objeções de empresas do setor, de minha parte, como relator, assento desde já rechaçar qualquer medida que, sob o disfarce de regulação, pretenda limitar a livre iniciativa de modo sub-reptício. Compreendo que o Airbnb é uma plataforma que modernizou o turismo no país e no mundo e avalio como absolutamente inadequada qualquer tentativa de inviabilizar esse segmento da chamada economia criativa”, afirma.
Enquanto o Congresso patina, algumas cidades Brasil afora tomaram a dianteira no debate, como Caldas Novas, em Goiás, que aprovou uma lei municipal, ainda não regulamentada, para disciplinar e tributar o serviço.
No município goiano, tornou-se obrigatória uma declaração ao poder público de quem deseja locar imóveis por temporada por meio de sites, além do pagamento do Imposto Sobre Serviço (ISS) por locação.
A base de cálculo do tributo é o preço da diária do imóvel em caráter remunerado. Desta forma, não basta apenas declarar a receita obtida por meio do aluguel no imposto de renda como é hoje. A lei também exige a autorização dos condôminos para anunciar o imóvel para locação.
No Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella (PRB) chegou a anunciar o encaminhamento de um projeto à Câmara Municipal para tratar do assunto, mas a ideia não avançou.
O projeto anunciado pela Prefeitura iria cobrar uma taxa de 2% a 5% de ISS de empresas do setor, além de estabelecer o pagamento pelos proprietários dos imóveis de uma taxa para a Contribuição para Fomento ao Turismo (CFT) do Rio de Janeiro.