Extinção ou autonomia, o dilema dos municípios

o dilema dos municípios

O dilema dos municípios – duas cidades de Goiás exemplificam por que a proposta de incorporar 1.217 localidades precisa ser discutida seriamente. Enquanto moradores de Mimoso almejam a integração, os habitantes de Gameleira celebram a independência.

“Se for para voltar a ser distrito de Padre Bernardo, vou com os pés e as mãos amarradas. Lá tem hospital, um supermercado melhor, banco; Tudo é mais fácil”, desabafa Joana, cidadã mimosense. “Se você vir uma foto daqui de 20 anos atrás e comparar com agora, é outra cidade. Caminhou-se tanto para chegarmos onde estamos, e vamos retornar à estaca zero?”, rebate Welisvânia, de Gameleira.

A situação de Joana e Welisvânia é reflexo do cenário de outras 1.215 cidades do país, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), que correm o risco de perder a emancipação devido a uma das propostas do pacto federativo do governo federal que pretende extinguir as cidades com menos de 5 mil habitantes e arrecadação própria inferior a 10% da receita total.

O texto encaminhado ao Congresso propõe que as cidades que não comprovarem até 30 de junho de 2023 que arrecadam pelo menos 10% da receita total com três tributos municipais ; Imposto Sobre Serviços (ISS), o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) ;, sejam incorporadas a um município vizinho com melhores condições financeiras. Pelas regras do governo federal, até três municípios poderão ser incluídos a outro a partir de 2025.

Na semana passada, o Correio visitou os municípios goianos, que integram a lista. A reportagem constatou dois extremos: enquanto existem moradores que não abrem mão da independência da sua cidade, há quem veja de forma positiva a eventual incorporação a um município vizinho.

A situação ocorre principalmente devido à forma como a população percebe o investimento feito pelo poder público dentro da cidade. Faz pouco mais de uma década que Joana mora em Mimoso. A chegada ao município coincidiu com o período em que a catadora de materiais recicláveis foi diagnosticada com hipertensão. Desde então, tratar a doença tem sido motivo de angústia para ela. Sem plano de saúde e refém de um serviço público local limitado a apenas uma unidade básica de saúde, não é raro que ela tenha de percorrer 18km até a cidade mais próxima, Padre Bernardo, em busca de atendimento. Isso, quando ela consegue carona.

“Aqui, não tem condução que faça o trajeto entre as duas cidades. Só tem ônibus três vezes por semana ; domingo, segunda e sexta ;, que vão para Brasília. Tirando isso, dependemos da boa vontade dos vizinhos que têm carro para oferecer carona. Sem contar que há alguns que cobram R$ 50 para nos levar. E não é só quando precisamos de atendimento médico. Se quisermos ir à delegacia ou a um mercado com mais opções, não tem jeito: é Padre Bernardo”, explica.

Assim como Joana, o também catador de materiais recicláveis e marido dela, Raimundo Oliveira, 56, reclama que, por mais que Mimoso seja emancipado, o município é bastante dependente de Padre Bernardo. Questionado sobre o que falta na cidade, ele não hesita em responder. “Tudo. Se a gente adoecer, tem que ir para o hospital de lá. Se quiser ir ao banco, tem que ir para lá, com ou sem carona. Poderiam colocar algum meio de locomoção. Não precisava nem ser um ônibus, mas uma van. Aqui, é um lugarzinho gostoso de se viver, distante de problemas. Só não temos retorno de benefícios”, desabafa o homem.
Basta percorrer a cidade para perceber o motivo do descontentamento dele. Em alguns locais, as ruas são esburacadas. A poucos minutos do centro de Mimoso, há um lixão a céu aberto, com uma pilha de resíduos acumulada. Apenas nos arredores do imóvel da prefeitura local é possível perceber algum progresso ; vem da administração pública local a principal fonte de renda do município. Mesmo assim, próximo ao prédio, há dezenas de veículos abandonados, como kombis e vans, que, com algum conserto, poderiam servir de transporte para a população.

Dentro das casas, também existem problemas. O auxiliar de serviços gerais Saturnino Correia, 47, já perdeu as contas de quantas vezes precisou trocar o chuveiro em razão da quantidade de sal presente na água que abastece as residências dos 2.597 habitantes da cidade, segundo levantamento da CNM. “Quando queremos beber água, temos de comprar, porque é impossível consumir a que vem da Saneago (Companhia de Saneamento de Goiás). Aí eu me pergunto: como é possível viver em um lugar assim? Particularmente, eu não me importo se mudar (Mimoso deixar de ser município), tanto faz seis como meia dúzia”, garante.

“Arroz com feijão”

A própria prefeitura de Mimoso reconhece que a cidade sobrevive muito por conta do Fundo de Participação de Municípios (FPM) que recebe mensalmente da União. Até setembro deste ano, de acordo com dados do Portal do Cidadão do Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás (TCM-GO), foram repassados pouco mais de R$ 6,01 milhões ao município. Com outros convênios, a participação do dinheiro dos cofres públicos federais na região chega a 66,3%.

“As cidades pegam o ;arroz com feijão;, que é o FPM, para sobreviver com o mínimo possível e, assim, pagar a estrutura administrativa do município e manter despesas com saúde e educação. Mas, às vezes, não dá para pagar tudo. Para investir em outras áreas, dependemos de emendas parlamentares de deputados goianos”, diz o assessor jurídico da prefeitura local, Carlos Ladislau.

Dados do TCM-GO mostram que, atualmente, apenas 5,9% do orçamento de Mimoso é composto por receita própria. Além disso, as despesas do município com pessoal estão acima do que estabelece a Lei de Responsabilidade Fiscal. O limite de gastos com os poderes Executivo e Legislativo deveria ser de no máximo 60%, entretanto, Mimoso destina 61,11% das suas finanças para a máquina pública.

O principal argumento do governo federal no redesenho dos municípios é enxugar os gastos com Câmaras dos Vereadores e prefeituras. “Nós tivemos uma proliferação de municípios além do devido. Muitos foram criados gerando novas despesas e o não atendimento do cidadão na ponta. É o que queremos corrigir. Nós queremos que o Estado presente, em seu nível federal, estadual e municipal, seja efetivo para o cidadão”, disse o Secretário Especial da Fazenda, Waldery Rodrigues Junior, ao comentar a proposta do pacto federativo apresentada pelo governo ao Congresso no último dia 5.

Para quem vive em Mimoso há muito tempo, como o lavrador José Francisco Filho, 67, a fusão com a cidade vizinha traria alguma esperança. “Nós fomos engolidos por políticos. Muda prefeito, muda vereador, e pouca coisa acontece. Na época eleitoral, todos te enxergam. Depois, nem querem saber de você”, comenta o homem, que mora na cidade há três décadas. “Por isso, espero que essa proposta vingue, será 10 mil vezes melhor. É a única chance de irmos para frente”, diz José Francisco.

Independência é motivo de orgulho

Em Gameleira, a professora Welisvânia viu a cidade sair de uma infraestrutura precária, quando mal era asfaltada, para uma urbanização mais moderna, com pistas pavimentadas que ligam o município às regiões vizinhas. Também foi testemunha do avanço de serviços essenciais à população, especialmente da escola pública onde hoje ela é diretora. “Aqui, era bem abandonado. Depois da municipalização, melhorou bastante, mesmo. O postinho de saúde antes era muito precário, não tinha suporte, e nós tínhamos de ir para Silvânia (a 20km) se precisássemos de socorro ou urgência, o que era muito difícil devido às condições de deslocamento. Segurança melhorou 100%, porque, antes, não existia nem policiamento”, lembra.

A independência do município é motivo de orgulho para ela. Em Gameleira, cidade com 3.818 habitantes, há escolas, posto de saúde com médicos e enfermeiros todos os dias e transporte escolar na porta das casas, que trazem as crianças da zona rural para a cidade e levam universitários que vivem lá para faculdades de Anápolis e Silvânia. Apesar do ritmo pacato de cidade pequena, a movimentação é grande: na última quinta-feira, quando o Correio visitou a cidade, todos os serviços estavam funcionando no horário do almoço.

Prefeito da cidade, Wilson Tavares (PP) conta que, assim como Mimoso, a cidade depende bastante do FPM. Até agosto, a prefeitura recebeu quase R$ 5,80 milhões da União. “É por meio dos repasses federais que a gente consegue cumprir com as nossas obrigações”, admite. Segundo ele, além dos gastos com a administração pública, uma parcela importante do fundo é destinado para manter órgãos estaduais, como funcionários da Polícia Civil e do Departamento de Trânsito (Detran). Até a comida dos policiais militares é paga pela prefeitura.


“Nós assumimos muitos custos que, na realidade, eram para ser do estado de Goiás. Responsabilidades que não são nossas, mas tomamos para nós a fim de que o nosso povo não deixe de ter o serviço. Queremos facilitar a vida de cada um. Se a gente larga, vamos prejudicar todos”, justifica. “Não é obrigação nossa, mas é uma via de mão-dupla. Afinal, estamos beneficiando a população”, reforça o prefeito.

Riscos e o dilema dos municípios

Contrário à possível extinção dos municípios, o diretor de educação da Federação Goiana de Municípios, Jaime Ricardo Ferreira, critica a decisão do governo federal de avaliar a receita do município como indicador de deficiência municipal. “O município representa a concretização da Federação. O Estado é abstrato. Quando o governo estabelece uma proposta dessa forma, desconsidera aspectos sociais, desconsidera as pessoas que vivem e produzem nessas cidades”, argumenta.

Consultor da CNM, Eduardo Stranz acrescenta que a proposta não tem potencial para gerar economia, pois o que poderia acontecer, segundo ele, é o aumento das fatias dadas a municípios maiores. Para Stranz, cidades não são empresas que devem gerar receita. “O município é um órgão público a serviço daquela sociedade e deve retornar, mediante serviços públicos, o dinheiro que as pessoas pagam dos seus impostos. Não tem que ter dinheiro no banco, superavit ou lucro. O dinheiro, que é arrecadado por toda a sociedade, financia o governo, que, por sua vez, deve retornar com iluminação pública e ruas sem buracos, por exemplo”, conta. “Não pode impor uma tese querer comparar a iniciativa privada com a iniciativa pública. Mas é claro que tem de haver gestão, controle e fiscalização pelo cidadão, pois o dinheiro é gerado por todos”, afirma.

No Congresso Nacional, a proposta já encontrou resistência por parte de deputados e senadores, que se movimentam para mudar o texto do Poder Executivo. No documento, está escrito que não será necessária a realização de plebiscito para que seja feita a fusão das cidades, ao contrário do que diz a Constituição. Dessa forma, o senador Otto Alencar (PSD-BA), apresentou uma emenda para “obrigar o município que não comprovar sua sustentabilidade financeira, a convocar plebiscito para que a população decida se deve ou não ser incorporado a outro município”.

Receios

Os avanços de Gameleira enchem os olhos do padeiro Valdnei Lobo, 34. Com a ameaça de fusão da cidade a Silvânia, ele teme a desvalorização do ponto comercial onde ele emprega três funcionários e que é o sustento da sua família. “Eu e muita gente vamos perder. Quando a cidade é muito longe da prefeitura, ele (o prefeito) não se preocupa muito. Seremos menosprezados, como acontecia antes.”

Para a agente de saúde Vaneide Moreira, 30, o governo federal estaria dando um tiro no pé e deixando o prefeito da cidade vizinha ainda mais afogado. Segundo ela, “a prefeitura de Silvânia não consegue nem gerir a própria cidade, logo, não vai dar conta de uma outra em desenvolvimento, como Gameleira”. Além disso, o seu receio é uma queda na qualidade de vida com a extinção do município, o que afetaria o futuro da filha dela, Heloisa Mariana Silva, 5. “Aqui, a vida é boa e pacata demais. Não penso em sair daqui, pois é muito bom para se criar uma criança. Quase não vejo crime. Na saúde, a gente tem médico todo dia. Gameleira é melhor que Silvânia”, resume.

Palavra de especialista

A estratégia do governo de aprovar reformas é a mesma das últimas propostas. Primeiro, você assusta com uma proposta ousada, cheia de margem para negociações, e tudo que for sendo negociado, você responsabiliza o Congresso por estar desidratando;.

Não se discorda que o pacto federativo precisa ser revisto, os municípios estão sufocados. É nesses entes federativos onde a riqueza é produzida. São os municípios que cuidam das estradas vicinais, que cuidam da infraestrutura urbana. São eles que apoiam a produção. É preciso dar fôlego a esses entes. Isso não justifica a proposta de passar a régua em mais de 1.200 municípios. Parece-me um pouco exagerada, sobretudo pelos critérios propostos: demografia e arrecadação.

É fato que não conseguimos explicar a existência de muitos municípios. A sensação é de que a grande maioria seria melhor distribuída em distritos, sem autonomia política. A questão é forçar critério de arrecadação e de população em um ponto tão sensível que tem implicações sociais, culturais e até mesmo econômicas. A ideia é, nesse aspecto, simplista. Há municípios em zonas de baixa densidade demográfica em que os centros urbanos são separados por centenas de quilômetros. Não dá para, simplesmente, uni-los.

Uma proposta com esse nível de impacto precisa ser precedida de um período de debate público para evitar novas distorções. É lamentável o desapego pelo debate.

O que nos tranquiliza é o fato de a Constituição da República, por meio de cláusula pétrea, exigir a manifestação da população interessada por plebiscito em eventual fusão. A tese da redução das estruturas estatais está na moda, mas é preciso ter apreço ao conhecimento. Vamos aguardar a reação do parlamento. Luís Felipe Cardoso.

Fonte: Correio Braziliense